
RELIGIÃO É CIÊNCIA
Autor: Dom Carlos Duarte Costa - o bispo de Maura – Santo reformador do Catolicismo Brasileiro
Apresentação:
Dom. Marcelo Pires de Oliveira
Cadernos do Cetas no. 17
Centro de Estudos Teológicos e Ação Social
ÍNDICE
Prefácio
Introdução
Capítulo I - Psicologia e Sociologia da Religião
Capítulo II - Filosofia da Religião
Capítulo III - Metafísica da Religião
Capítulo IV - Personalidade e Religião
Capítulo V - Conceito de Deus
Capítulo VI - Personalidade Humana e Divina
Capítulo VII - Gênesis e Evolução Psicológica da Religião
Capítulo VIII - Dogma, Moral e Culto
1 - Prefácio
Faz mais de uma década que eu tive pela primeira vez a oportunidade de ter acesso a alguns fragmentos da revista Luta. Era o ano de 1990 quando o Bispo Diocesano de Teixeira de Freitas – Ba, Dom Anísio Alves Cerqueria, havia me entregue o Manifesto à Nação e alguns textos da revista Luta, oriundos do extinto Seminário São José, da Diocese de Niterói – RJ, cujo bispo de então era Dom José Antenor da Rocha. Desde aquele primeiro momento eu havia percebido que alguns textos escritos por São Carlos do Brasil havia alguma coisa de misteriosa e enigmática. Isto se devia ao fato de eu ter percebido que o autor mudava abruptamente de tema e de estilo literário em uma única obra.
Na verdade o Santo Fundador da Igreja Brasileira havia escrtito um completo Ensaio Filosófico-Teológico denominado por ele próproio de Religião é Ciência; mas, desafortunadamente, sua total publicação foi feita em partes e intercaladas à diferentes números da revista Luta.
A sensação que eu experimentava ao ler esses escritos intercalados uns aos outros, era como a de um pesquisador antes de descobrir um tesouro arqueológico de uma determinada civilização antiga, que ao concentrar-se em determinada área, e, através de cuidadosas escavações, vai encontrando pequenos fragmentos de materiais que, às vezes, aponta vestígios para a descoberta de um inexplorado tesouro.
Este tesouro teológico que agora apresento aos leitores do CETAS foi descoberto nos Estados Unidos da América, país onde me foi facilitado o acesso à totalidade das revistas Luta. Graças à Diocese de New York através do seu bispo Primaz – Dom Justo Gonzalez Trimiño, que gentilmente ofereceu-me cópias dos 25 números da revista Luta, foi possível descobrir-se este importante e histórico documento.
Enfim, em um contexto de acirradas lutas com o Governo Brasileiro e com a Igreja Romana para a legalização de ICAB; em meio à prisões, apedrejamentos, incêndios e fechamentos de templos e escolas da ICAB, foi escrito Religião é Ciência. Inicialmente apareceu na forma de nove artigos publicados na revista Luta de 1950 a 1955. O autor não pôde publicá-lo inteiramente em uma só obra, como certamente gostaria de tê-lo. A exposição de uma análise mais revolucionária acerca do sentimento religioso em contexto de censura e de opressão teria significado, certamente, uma provocação aos órgãos conservadores da Igreja e do Estado.
Apesar dessas limitações, a obra foi publicada por completo; mas, desafortunadamente, os leitores da revista Luta não poderam compreender a significação exata deste Ensaio Filosófico-Teológico por ele encontrar-se originalmente cortado e espalhado abruptamente, como um jogo de quebra-cabeças que está embaralhado à mercê de alguém que o ordene.
De nossa parte, não introduzimos modificações significantes a este Ensaio; apenas dividimos-lo por Capítulos sem alterar a sua ordem cronológica. A perspectiva apresentada pelo autor vale por si mesma. Este foi escrito com o objetivo de demonstrar, através das ciências sociológica e psicológica de um lado e a filosofia e a teologia do outro; que o sentimento religioso do homem é algo inato e que as religiões evoluidas partem de um ponto comum, originalmente latente nas primitivas religiões que fizeram e fazem a historia da humanidade.
New York, 2004.
Pe. Marcelo Pires de Oliveira.
2 - Introdução
Na aurora de uma nova civilização, é interessante e mesmo necessário o estudo da religião, para se acabar com o fanatismo, fetichismo e todo sentimento religioso exagerado ou errôneo que leve à prática de deveres absurdos ou imaginários, verdadeiro entrave para o progresso da civilização.
Esse estudo nos levará ao conheciemnto dos seres cósmicos, sua origem, seu fim, suas transformações e suas relações necessárias. Sobre este ponto de vista, a religião é científica, formula suas descobertas, tornando-as dogmas que impõe à crença de seus adeptos, passando a construir sua teologia ou mitologia, quando a religião é politeista e antropomórfica. Ficam, assim, ligadas a teologia, a filosofia e a ciência.
Definidas estas relações necessárias e supondo o homem livre até certo ponto, bem como muitos outro seres, surge o intercâmbio que precisa ser regulado. Supondo que haja entre o homem e outros seres visíveis, um certo número de seres invisíveis e até a divindade, desse intercâmbio, formam-se relações atuais, atos unilaterais ou recíprocos, estando ou devendo estar esses atos conformes com uma coordenação ou subordinação, em hierarquia natural. O homem terá deveres para com Deus: terá até direitos a exigir de Deus. O mesmo se dará entre o homem e os seres invisíveis, almas dos antepassados, anjos ou demônios, se existem, e também entre o homem e seres inferiores, como os animais. Com mais razão, haverá deveres entre os homens, uns com os outros. É verdade que estes deveres e a sua sanção, cabendo, entram no domínio da sociologia e formam matéria de direito, mas também os compreendem a religião, embora tomados sob diferente aspecto. O homem estará então unido aos demais, não somente pelo laço social, mas também pelo cósmico.
Esta pluralidade de laços concebe-se logicamente. E o laço antropológico? É o laço da descendência, que constitui a família objetiva. Esse laço forma o enlace biológico, sociológico, cósmico. Este último é o que a religião estabelece entre os diferentes seres que compõem o mundo e impõe, em seguida, a todos os seres que se aliem. Segue logicamente o dogma, porque para estabelecer obrigações
recíprocas, é necessário previamente ter conciência dos seres entre os quais estas
relações tem lugar. Finalmente, não se trata somente de descobrir quais sejam as relações necessárias e quais as voluntárias entre eles, mas é preciso, também, realizar atual e cotidianamente estas relações, estabelecer a comunicação entre todos e sobre todos, interessando, sobremaneira, as que existem entre o homem e a divindade. Isto é o que faz a religião, mediante a prática do culto.
Capítulo I - Psicologia e Sociologia da Religião
Religião é a Ciência que estabelece a aliança entre o homem, a divindade e os
demais seres cósmicos; causa, efeito e realização desta aliança. É uma sociologia, porém, mais elevada que a ordinária, que só abrange os homens. Pode ser chamada sociologia do mundo ou cosmo-sociologia, a ciência da religião, do ponto de vista objetivo. Isto não impede sejam estudadas as religiões sob o ponto de vista diferente, desde o subjetivo.
Não se trata de saber se uma religião ou um conjunto de religiões, é objetivamente verdadeira, nem tão pouco, supondo-as verdadeiras, averiguar que sistema de mundo poderá ser construido inteiramente sob essa base. Trata- se tão somente de considerar a religião ou as religiões como um produto, tanto da sociedade, como do espírito humano. No primeiro caso, a religião chega a ser um ramo da sociologia, não se ocupando da sociedade em geral, mas da sociedade religiosa externa, por exemplo, da constituição de uma Igreja, das relações recíprocas entre Igrejas de várias religiões e as relações com a sociedade civil. No segundo caso, a religião chega a ser um ramo da psicologia. Os fenômenos mentais, ao produzirem-se ou particularizarem-se, se tornam fatores religiosos. A religião, neste sentido, é um produto do espírito humano, o que não quer dizer que o seja exclusivamente, mas também o é admitida mesmo toda a verdade objetiva que possa ser desejada.
Com mais razão então, ela se rege pelas leis psicológicas, segue a evolução mental, servido mesmo de reativo, tanto que, considerada tal ou qual religião, ou melhor o meio termo de todas, veremos o espírito humano em certos momentos como num espelho. Fixemos o nosso lhar nesta imagem. Façamos um esforço por nos esquecer dos demais elementos da religião e procuremos vê-la tão somente sob o aspecto psicológico.
Não é somente a religião a única ciência que contém considerável quantidade de psicologia. O mesmo se passa com a linguística, e o notável é que esta, como a religiosa, contém certa quantidade de sociologia e de pura psicologia. Certo é que, se o homem não vivesse em sociedade, a linguagem não existiria ou não teria
se desenvolvido. É, pois, um perfeito fenômeno social e, sem embargo, entrando
em pormenores, encerra grande número de elementos psicológicos. Sua sintaxe repousa diretamente na psicologia; sua morfologia lhe está subordinada, sua fonética se liberta, para cair no mundo físico; a sociologia intervém pouco, somente para tirar conclusões e servir-se dela como instrumento. Tal-qual a linguagem, o direito é eminentemente sociológico, mas sua base profunda, a moral, é inteiramente psicológica; nisso, também, se vê o desdobramento de uma ciência.
Podemos fazer igual observação com relação a ciência subjetiva das religiões. Compõem-se, também, de elementos sociológicos e de elementos psicológicos. À primeira vista, parece que predominam os primeiros: religião significa aliança e aliança aquí é a sociedade. Como teria o homem deveres a cumprir, se não tivesse semelhantes. Sem dúvida, ao adotar as idéias religiosas, pode dizer-se que, mesmo isolado, o indivíduo nunca estaria sozinho, tendo diante de si a divindade. Mas a moral e o culto estariam singularmente diminuidos. Todavia, temos que ter presente que quase todas as manifestações de crença ou a prática são, principalmente, psicológicas e não podem ser explicadas, na sua gênesis e na sua evolução, senão pelo estado mental do crente.
É fácil discernir com exatidão o que é social e o que é psicológico na religião externa, isto é, na ciência subjetiva da religião, tanto mais que somos forçados a fazer esta separação e eliminar o que é sociológico, para fixar mais a nossa atenção nos fenômenos puramentes psíquicos. Assim, por exemplo, o culto parece depender da sociologia, sendo realizado em público, pelo menos em família, no que se diz respeito aos defuntos, é o que se deduz certamente de uma consideração superficial, mas se o culto, com efeito, nos conduz à sociologia, suas raízes, seus fatores primordiais, estão na psicologia; foi o espírito que teve necessidade do culto, foi o espírito que evocou a Deus, primeiramente. A oração mental não é a menos fervorosa. O ideal é uma necessidade inteiramente individual, antes que outros dele participem. Buscar a origem da religião na sociedade, seria, mesmo quando a religião seja muito social, tomar um caminho errado. Em suas raízes e em sua primeira evolução, a religião é psíquica. Ela não se socializa, senão em ulterior evolução. Poderiamos apresentar como exata a
fórmula seguite: A religião é psicológica no seu ponto de partida e em sua evolução espontânea; chega a ser sociológica em seu ulterior desenvolvimento.
Ainda nesta última etapa conserva proporção importante de psicologia, que pode discernir-se com algum esforço, porque fica latente. A oração em comum, por exemplo, que é social, opõem-se à privada e mental, que é psíquica. O mesmo sucede com a penitência e outros sacramentos. Mas nas mesmas reuniões piedosas, cada qual se dirige a Deus e não aos seus vizinhos, nem ao sacerdote. Há uma oração e uma adoração, entre os fiéis, em que estão materialmente juntos, porém, cada qual rogando, a seu modo, que é o que se passa, na Igreja Romana, na qual a língua oficial é a latina, compreendida por poucos.
Observadas e comparadas, atentamente, como vamos fazê-lo, as diversas religiões, admiramos grandemente sua afinidade em muitos pontos, sem que haja havido qualquer imitação. É a lei da unidade do espírito humano. De onde resulta, de modo evidente, que a religião se amolda ao espírito, cujas depressões e saliências conserva. Se assim não fosse, estas coincidências não teriam lugar.
Basta citar o fato, notável entre todos, da existência em muitas religiões de diferentes sacramentos que, por muito tempo, se acreditou serem de exclusividade do cristiansimo. Do mesmo modo, as instituições da hierarquia, o sacerdócio, a vida eremítica, o profetismo, tanto que seria possível, omitidas as diferenças, formar-se uma religião ideal, que conservasse o essencial de todas as positivas. É que todas se assemelham, mais ou menos, a seu pai, o espírito humano. Do mesmo modo, em todas as gramáticas, se encontram os mesmos procedimentos, em umas em gérmen, em outras em pleno desenvolvimento, aparentes em umas, latentes em outras, formando, porém, um fundo comum. O gerador disso é o espírito, comunicando a todos esses procedimentos sua vaidade.
Achar esta unidade na diversidade aparente das religiões, é reconstruir uma psicologia particular, mais palpável, mais visível que a psicologia geral e abstrata. É fazê-la aparecer mediante um reativo poderoso, com vidro de aumento a nosso alcance. O estudo desta psicologia parcial e de outras poderia dar o resultado de uma psicologia comum mais sólida. A história, a biografia, a sociologia étnica poderiam fornecer elementos psíquicos. Já houve uma tentativa para a formação de uma posicologia de diferentes povos. Seria útil o ensaio
destas psicologias parciais, para que a ciência dê a cada uma a própria psicologia.
Neste sentido, a ciência das religiões, é uma das que podem oferecer maiores resultados. Sua riqueza psíquica é muito grande. Espero continuar meus estudos nesta matéria, deixando de parte o elemento sociológico, para cuidar especialmente do elemento psicológico.
Analisaremos o dogma, a moral e o culto de cada religião, procurando seus fatores psíquicos e o resultado reduzido no estado mental do homerm. Em seguida, traremos a público os fatos observados, dentro das leis psíquicas que os regem, fazendo todas as leis dependerem da lei dominante, que é a lei da unidade do espírito humano. Depois de todos esses estudos é que chegaremos à origem psicológica das religiões, a qual nos dará a conhecer suas causas psíquicas.
Capítulo II - Filosofia da Religião
O panorama do sentimento religiosos é este: Até agora a religião sobreviveu às religiões, como a árvore à queda periódica de seus frutos. A enorme gravidade da situação atual estriba-se em que não é este ou aquele dogma, senão a mesma transcendência da fé que, em essência, é qualificada de ilusória e fantástica.
Não sobrevive agora a forma vazia da transcendência, que procura um novo conteúdo com que encher-se, senão alguma coisa mais profunda: a necessidade, o anelo que, em geral, se apazigua com o transcendente; em suma, uma realidade espiritual que, abolindo os conteúdos da fé, parece paralizar-se e afastar-se do caminho que conduz pujança da vida.
Fechadas todas as saídas, exceto a transformação radical da conduta interior, é preciso, antes de mais nada, esclarecer a mudança de posição instaurada por Kant, segundo o qual a religião é uma maneira íntima de se conduzir a alma, em contraposição com a idéia de que a religião é um meio termo ou mistura confusa deste sentimento, ação interior e uma existência que transcende dêle.
Pode existir um meio de relação entre o espírito e o transcendente, e então a religião é a parte desta relação que cai do lado do espírito humano. Mas da mesma maneira que, segundo Kant, os membros não podem passar dentro de nós de uma região para outra, assim também Deus não pode alicerçar-se em nosso coração. Quando se afirma, todavia, que o espírito se identifica e se confunde com Deus, isto se passa do ponto de vista da metafísica ou da mística. Mas a religião precisa ter um sentido inequívoco, distinto da especulação e, portanto, não pode ser mais que uma maneira de ser, um acontecimento de nossa alma, que é a parte que nos é conhecida. Um temperamento erótico acabará por amar, quiçá, exclusivamente a uma determinada pessoa, mas já de antemão e previamente era erótico, e há de diferenciar-se essa sua maneira de qualquer outra manifestação ou manifestações isoladas e concretas. Assim mesmo, a natureza religiosa é um templo da alma, que de antemão sente e leva a vida de outro modo e outra forma que uma natureza irreligiosa, e o mesmo faria ainda quando vivesse solitário em uma ilha, onde não ouvisse palavra nem conceito algum sobre Deus.
Dada a singeleza, tratarei em primeiro lugar do caso desta natureza puramente
religiosa, no sentido mais categórico, sem resíduo ou mistura de outra coisa. Nesse sentido, esta alma não tem a religião somente sob o ponto de vista de um possuido ou de uma faculdade. Seu ser é já um ser religioso e, por assim dizer, toda essa alma funciona religiosamente, da mesma maneira que o nosso corpo funciona organicamente. Para este modo de ser, os dogmas não são meros conteúdos, que aquí revestem uma forma, alí outra, senão que são também exteriorizações da constituição singular de sua alma. O sentimento de dependência e alegria esperançada, a humildade e o anelo, a indiferença às coisas terrenas e o que regula a vida, não constituem tão pouco o aspecto religioso mais profundo do homem religioso. Todas essas coisas brotam e emanam da sua essência, alguma coisa que ele tem, como o artista tem, a fantasia, habilidade técnica, sensibilidade aguda e faculdade de estilização, enquanto que a substância do seu ser, o que faz o artista, aquilo cuja unidade não pode decompor-se, faz, por assim dizer, debaixo de tudo isso.
De acordo com estas interpretações, parece-me que a religiosidade do homem é concebida sempre como combinações e modificações das energias gerais, o sentimento, o pensamento, a volição moral ou o apetite. Mas na realidade, a religião é a essência fundamental da alma religiosa, a qual determina a coloração e funcionamento de todas as qualidades gerais – e especiais – da alma. Somente depois – embora no sentido cronológico da palavra – esta essência se decompõe em necessidade e satisfação, como o ser do artista se manifesta em correlação do impulso criador e a execução da obra.
Assim, pois, em virtude desta separação entre a necessidade íntima e sua satisfação ou preenchimento, apresenta-se a religiosidade como a constituição natural do homem religioso em contraposição e a objetividade de um conteúdo religioso. Só quando o ser religioso, o caráter íntimo, essencial da personalidade, religiosa, entra na fase psicológica e se revela como necessidade, anelo, desejo, só então exige uma realidade em que satisfazer-se. Este é o momento em que intervém e realizam seu papel os agentes espirituais que, em todo o tempo, foram apontados como criadores de deuses: o temor e a miséria espiritual, o amor e a dependência, o anelo pela prosperidade material e a redenção eterna.
Mas a questão de origem não se apresenta visivelmente até que a complexão
religiosa interior chegue a essa diferenciação entre a necessidade e a satisfação. Então é quando a alma tende a uma realidade ao Deus tido como verdadeiro. Assim, pois, só agora pode surgir a questão se a religião é verdadeira ou falsa; questão que, evidentemente, carece de sentido, se por religião se entende aquela constituição fundamental do homem. Mas um homem não pode ser verdadeiro, nem falso; só pode aquele que acredita na crença em uma realidade do além.
O aspecto gnoseológico da confissão: eu creio em Deus, sob um ponto de vista nos diz pouco, sob outro ponto nos diz muito. Isto revela que a oposição entre um sujeito crente a um objeto crido, é uma desavença secundária, uma expressão não muito adequada de alguma coisa mais profunda, de uma certa realidade interior estranha ao conhecimento.
O homem em busca da divindade:
As denominações vacilantes dos místicos: Deus é puro nada (em contraposição com qualquer coisa particular que se possa apontar), ou Deus é um Ser superior, não pretendem outra coisa senão iludir em Deus a questão da realidade. Esta não existe mais no fundo onde brotam as raízes da religião ou a religião como última raiz do mesmo ser. Mas como o homem é um ser ávido e o primeiro passo de sua existência o conduz ao desejo de ter, de possuir; como o primeiro passo do sujeito consiste em ingressar na objetividade, o processo vital religioso, essa profunda constituição de alguns homens, se converte no ápice numa relação entre o ser que crê e o objeto crido que existe por si mesmo, ou entre um que deseja e outro que outorga. Desta maneira, esta forma objetivada de realidade age sobre a própria religiosidade, e assim a oração, a magia, o rito se convertem em instrumentos de prática eficácia.
Assim, pois, quando o homem subjetivo enfrenta com a realidade objetiva de Deus, é quando se estabelece integralmente a questão da verdade, a luta sobre a verdade ou a ilusão, e a essência religiosa no homem se detém neste novo plano para o qual se transportou.
Esta transposição, inevitável até agora para os homens, de acordo com o testemunho histórico, dá precisamente origem à critica racionalista. Esta chega a
seguinte conclusão: ou há na realidade um ente metafísico, transcendente-divino, que existe fora do homem ou, se o espírito científico não admite esta realidade, a crença nela é uma fantasia subjetiva, que é preciso explicar psicologicamente.
Mas se este dilema pretende refutar o metafísico, o irredutível a termos psicológicos, incorre em grave erro, porque há uma terceira posição: Por acaso esta fé, este fato que se opera na alma, pode ser, por sua vez, algo metafísico, porque nele vive e se dá a conhecer um ser, aquele modo de ser religioso, cujo sentido é completamente independente do contido que a fé produz ou em que a fé faz pressão.
Quando o homem se depara com uma figura metafísico-divina, que supera toda singularidade empírica, não projeta nela sempre nem exclusivamente suas emoções psicológicas, temor, esperança, superabundância, desejo de redenção. Nessa figura projeta, ainda, o homem aquilo que nele mesmo é metafísico, o que nele mesmo trascende de toda singuilaridade empírica. Da mesma maneira que o movimento dos elementos cósmicos calculáveis se sustenta no fato irredutível de que existe um mundo e um ponto de partida determinado e característico de sua evolução, assim também, a movibilidade psicológica, calculável em princípio, que engendra as figuras religiosas, se funda na psiquê que existe, previamente, com determinado modo de ser. De maneira que o fato de produzir-se a série psicológica como tal série, supõe uma base fundamental que, por sua vez, não se produziu no curso da série.
O pensamento de Feuerbach perdeu o equilíbrio neste ponto. Para ele, Deus não é outra coisa que o homem que, acossado por seus desejos, se exalta a si mesmo até o infinito e depois pede auxílio ao mesmo Deus que assim o criou. Religião é antropologia. E com esta estrutura acredita Feuerbach ter resolvido o trasnscendente, vendo no homem o fluxo empírico das particularidades anímicas. Ele tivera dito melhor: assim, pois, o valor metafísico, superindividual da religião cria raízes na essência religiosa do homem mesmo. Naturalmente, da mesma maneira que a divinização do homem, pode refutar-se a humanização de Deus, pois em ambos os casos se efetua uma aproximação posterior à força, de duas instâncias que cada uma em seu plano tem que opôr-se imediatamente. Mas é possível superar este dualismo, porquanto o espírito na fé ou movido pela fé
produz com o seu objeto e sente seu ser religioso como o absoluto ultrapassando essa relação, isento da oposição entre sujeito e objeto.
A representação do espaço que encontramos em nossa consciência não nos permite concluir que, portanto, existe fora da consciência um mundo espacial: pelo contrário se Kant está certo, a mesma representação é tudo o que chamamos realidade espacial. Da mesma maneira a religiosidade subjetiva nos garante a existência de um ser ou de um valor metafísico fora dela, se não for ela mesma, e imediatamente esse ser e esse valor, uma realidade, que já compreende em se todo o supracósmico, a profundidade, o caráter absoluto e sagrado que parece perdido nos objetos religiosos.
Esta transformação pode comparar-se à da ética, que não procura a significação moral no próprio contido da ação singular, senão que na boa vontade. A bondade é o caráter fundamental, irredutível de um processo volitivo. Ainda que seja a bondade que determine ao sujeito escolher certos e determinados fins, estes não são bons originalmente, nem emprestam à vontade, que os acolhe o caráter de boa. Pelo contrário, é a bondade a que, como força espontânea informadora de nossa intimidade dá o valor moral aos diversos conteúdos que, como é sabido, nunca podem ser descobertos neles, tal-qualmente se apresentam em sua matéria imediata e visível.
Não se pode dizer, à primeira vista, que o conteúdo religioso é, verdadeiramente, religioso ou não: a representação de Deus pode ser criada ou imaginada e tida como mera especulação. Os dogmas podem ser aceitos por mera sugestão, assim como a redenção por mero afã de contentamento. Tudo isso se torna religioso, quando fica enraizado naquela realidade singularíssima que chamamos religiosa, seja ela criada ou reproduzida. É assim como a boa vontade de um homem conserva seu valor moral em toda a sua pureza e plenitude, mesmo quando o destino suprima as possibilidades de realizar uma obra visível, da mesma maneira, o valor religioso da alma se conserva, ainda quando motivos intelectuais ou de outra natureza tenham anulado os conteúdos em que este valor teve origem, tornando-os, portanto, religiosos.
Capítulo III - Metafísica e Religião
O ser religioso não é estático, não é uma qualidade oculta, um quadro definitivo, como a beleza de uma obra da natureza ou da arte. Pelo contrário, é uma forma da vida inteira, da vida vivendo, uma maneira que a vida tem de vibrar, de manifestar-se, de cumprir seu destino.
Quando o homem religioso – o homem como ente religioso – trabalha ou goza, espera ou teme, ri ou chora, tudo isso ele o faz com uma entonação e um ritimo próprio, uma relação de cada ação singular com a totalidade da vida, uma distribuição marcante entre aquilo que interessa e aquilo que é indiferente, em nada se assemelhaando com as experiências íntimas do homem prático, artista e teórico.
Creio que o grande erro das teorias anteriores psicológicas da religião consisite em fazer começar a religiosidade onde os sentimentos descritos passam a ter uma transendência substancial e apresentam um Deus exterior. Para essas teorias, a vida e o que ela contém não fazem do homem um ser religioso, enquanto não brote nele a fé na divindade. Essa fé é o resultado, é o fruto, é a hipostase de um processo íntimo puramente empírico. E é essa fé que opera a reação sobre a própria vida.
Estou que no homem de temperamento verdadeiramente religioso, os processos anímicos já nascem com o matriz religioso, da mesma maneira que os atos de um homem elegante já são elegantes por partir dele, da sua constituição, elegante na origem, não tomando um sobreposto colorido de um contido incolor ou produzido de uma outra tonalidade.
Somente a abstração, posta em prática, posteriormente, pode, numa vida religiosa, separar a religião da vida.
Claro está que esta separação é favorecida extraordinariamente pela criação de produtos especiais, com os quais, por assim dizer, a vida destila uma realidade religiosa, construída num recinto que só a religião pertence: o mundo do transcendente, os dogmas eclesiásticos, os feitos ou as boas obras praticadas, como condição, para a salvação.
Na mesma medida em que a religiosidade fica circunscrita exclusivamente a essa esfera real, é possível separar da vida a religião e sua capacidade para tornar-se uma forma de sentir e plasmar todos os contidos vitais, transformando-se, em troca, em um contido qualquer entre outros muitos. Por esta razão, os homens de religiosidade fraca ou nula não admitem outra existência religiosa a não ser a do dogma. Neles, o religioso não determina o processo vital como forma imanente; portanto, precisam ter diante de se alguma coisa transcendente.
Assim, pois, na vida destes homens, a religião se transforma em algo localizado objetiva e temporalmente, e bem poderíamos dizer que no espaço também: o passeio domingueiro à Igreja é a caricatura desta completa separação entre a vida e a religião. Isto acontece porque a religião, em vez de ser a vida mesma, se transformou num modo de vida como outro qualquer; e porque no homem verdadeiramente religioso, para quem religião é a mesma vida, a religião transferiu sua essência como processo e caráter essencial da vida toda a uma substância transcendente, a uma realidade que, de algum modo, se lhe opõe. Destarte, criaram estes homens a religião como uma coisa em que também tome parte uma vida não-religiosa. Neles a religião continua sendo a forma de todo pensamento e de toda ação, de todo sentimento e desejo, de toda esperança e de e de toda dúvida. Não é a elevação harmoniosa que ressoa constantemente em tudo, mas a totalidade fundamental e originária de toda as harmonias e dissonâncias da vida que tocam ou se extinguem, que iniciam ou se resolvem. Assim, pois, sua significação metafísica não está tomada em empréstimo ao objeto transcendente pelo qual se orienta a religião, senão que forma raízes na sua própria existência.
Se agora lançarmos a vista sobre o problema fundamental deste estudo, que não é outro senão compreender como possa ter sentido e complemento o inextinguível anelo do valor religioso, mesmo quando o que vimos não satisfaça a realidade do cometimento, todavia já aparece a possibilidade de que a religião, prescindindo de sua substancialidade, de sua vinculação a um objeto trascendente, ela, a religião, se oculta ou se rebaixa, funcionando em uma forma interior da vida, entregue, mesmo, a paixões subalternas. Esta questão estriba-se em saber se é possível que o homem religioso viva a vida com essa unção e intensidade, essa
paz e essa profundidade, essa luta e essa beatitude; se é possível que sinta a vida com valor tão metafísico que possa, como por uma espécie de rotação, colocá-lo em lugar ocupado antes por objetos transcendentes da religião. Isto, porém, é bem diferente, na essência, da expressão parecida de Schleiermacher, segundo a qual nada deve fazer-se por religião, mas, sim tudo fazer-se com religião. E se os diversos atos da vida devem ser feitos com religião, quer isso dizer que a religião é alguma coisa que está externamente agregada, ligada, de fato, praticamente, a todos os pensamentos, atos e sensações, e que, em princípio, estes modificam seu curso imanente e deixam de existir se ela falta.
Assim como o homem racionalista não acompanha tão somente seu sentir e querer com reflexões intelectuais, senão que a intelecção determina préviamente a classe de seus acontecimentos anímicos, porque é uma função que os sustenta a todos, da mesma maneira o problema da situação religiosa estaria resolvido, se os homens vivessem uma vida religiosa, isto é, uma vida de tal espécie que não se realize com religião, senão que todo o curso de sua vida seja religioso, e não uma vida que se realize por religião, isto é, por um objeto qualquer situado fora dela. Com efeito, por mais que seja isso um processo religioso interno, está, todavia, como objeto transcendente sujeito à crítica. Em troca, como ser criticado, como não o pode ser, em geral, a diferença de uma idéia de fé ou de uma idéia científica.
Todo o problema do destino dos homens religiosos se encerra na seguite interrogação: Suposto que os objetos que satisfazem o anelo religioso – não somente os conhecidos, senão qualquer em geral – não posam ser oferecidos a esse anelo, por uma reação ou retrocesso, ou por uma modernização da fé, pode o homem religioso experimentar, sem embargo, na configuração religiosa de toda a realidade, o sentimento de ter alcançado o sentido mais profundo da vida, por assim dizer, o valor metafísico, que já não se nutre em objeto transcendente, reverta sobre si mesmo como significação de sua existência?
Esta separação de todo o dogma, sem dar a essa palavra sentido ofensivo, nada tem que ver com o liberalismo religioso, porque este também vincula a essência religiosa e certos fatos, entre eles, uma livre escolha pessoal.
Pode a evolução religiosa tomar esta diretiva? A dificuldade está em que esta parece aberta unicamente aos temperamentos especificamente religiosos. Para estes, o problema não encerra nenhum perigo importante.
O homem religioso pode passar por dúvidas, o irresistivel anelo, o insulto, a ruína; no fundo está seguro na fé, porque, para ele, esta significa somente a segurança em si mesmo, encontrar nesses homens uma realidade tão profunda e transcendente, que não necessitam chamá-la Deus. Por esta razão, muitos místicos, profundamente religioos, mostram uma notável indiferença com relação aos atos de fé.
Poderá suceder que o temperamento religioso se abrace apaixonadamente a determinado ato de fé; mas para não subtrair-se à negação crítica de sua verdade, terá que substituir esta por alguma outra ou cair no desespero ou, então, encher-se de fanatismo iconoclasta de luta contra a heresia em que a religiosidade se afunda e consome com igual energia que antes, mas com sinal negativo.
O temperamento religioso não vive nunca no vácuo, porque tem a plenitude dentro de se mesmo.
Os homens verdadeiramente religiosos não sentem – no que não cabe a menor dúvida – a indigência religiosa da nossa época. Sentem, sim, os homens dotados somente de alguns elementos religiosos, os homens que tem necessidade da religião, porque seu temperamento não é religioso, os homens nos quais a religião preenche um doloroso vácuo da existência.
Parece paradoxal esta afirmação de que precisamente os homens não religiosos são aqueles que mais necessitam de religião em seu sentido histório, como fé em uma realidade transcendente. Mas este paradoxo se desenvolve quando pensamos no fato análogo de que a alma plena e instintivamente moral não necessita de nenhuma lei moral formulada como imperativo, ético.
Somente nos perversos, nos impuros, nos vacilantes ou fracos se separa, se põe de lado a consciência moral que possuem em algum grau e se converte em dever. Em troca, o homem verdadeiramente moral o é por essência e o dever não constitui uma fórmula distinta do seu próprio ser. Quer dizer, em complemento da expressão religiosa: quem não tem Deus dentro de si, necessita tê-lo fora.
Os homens religiosos dos credos históricos tinham Deus dentro de se e fora de se. Nas personalidades geniais e criadoras desta espécie, a religiosidade
interior era tão poderosa e ampla, que não se satisfazia dando forma a toda a vida. Aquela forma da sua vida extravasava todos os seus atos e se transformava em uma supravida. Seu ser religioso não podia suportar só sua plenitude e paixão, senão que se lançava ao infinito, para recebê-lo de rechaço, porque não acreditava dever suas amplitudes e profundidades, suas beatitudes e desesperos a se mesmo. Mas a imensa maioria dos homens se limita a encontrar diante de si a divindade. Esta consiste, para ele, em uma realidade objetiva que é a que, na maior parte dos casos, dá vida e atividade a suas energias religiosas, latentes ou semivivas.
Embora a crítica arrebate aos homens religiosos seu Deus, estes sempre conservarão em se mesmos, não somente a fonte de onde Deus procede, como também o valor metafísico que Deus representa. Em troca, estes perderiam de um só golpe a Deus e tudo o mais, pois a massa necessita alguma coisa objetiva num sentido completamente distinto do indivíduo criador e profundo.
A grande interrogação que apresenta o estado atual e futuro da religião, pode formular-se neste modo: É possível esperar que a religiosidade do tipo médio se desvie do substancialismo celeste e dos fatores transcendentes para converter-se em uma configuração religiosa da mesma vida e da realidade interior, que pode designar-se com expressão filosófica como consciência da significação metafísica da nossa existência? Podem orientar-se todos os afãs supracósmicos, todas as devoções, beatitudes, humilhações, toda justiça e graça, não em uma dimensão vertical sobre a vida, mas na dimensão de profundidade dentro da mesma vida? Para que servem todos os esforços para concatenar de modo perdurável os valores religiosos e desta maneira conservá-los? Cogita-se conseguí-lo pelo caminho kantiano, pela estrada moral, extraindo da severidade ética, a segurança do mundo religioso da fé. Intenta-se também o caminho da mística, que coloca os objetivos religiosos numa luz crepuscular tão confusa que resulta impossível demonstrar sua realidade, e com isso já se considera provada. Intenta-se também por meio do catolicismo romano, o qual intercala entre o indivíduo e a salvação sua organização de predomínio econômico mundial, de maneira que a salvação participa da realidade da Igreja Romana, única via de salvação e com isso fica eliminada a responsabilidade do indivíduo no ato de fé.
Pelo caminho do espírito parece se prescindir definitivamente de todos esses
meios e intercessões, é apresentar e arriscar todos os credos ante a rigorosa e cruel pergunta, se são ou não reais. Não cabe dúvida sobre qual há de ser a resposta relativamente aos credos históricos. A dúvida é mais, com relação aos outros credos religiosos, que admitem Deus em princípio, um Deus trasncendente, oposto ao mundo.
Mas como também é indubitável que as energias que criaram e enalteceram essas formas, não participam de sua caducidade, parece que o destino da religião caminha para essa transformação radical, que poderá oferecer a essas energias uma forma de atividade e valorização diferente da criação de figuras transcendentes e de sua relação com elas, devolvendo à natureza religiosa da alma aquele valor metafísico, que havia segregado de se mesmo, para viver nele a sua vida.
Capítulo IV - Personalidade e Religião
A Ciência, porém, continua as suas pesquisas físicas e estas nos conduzem ao estudo das forças cósmicas, ligados, como estão, os planetas uns aos outros, atraindo-se uns aos outros, por leis eternas, que gerações vindouras hão de explicar, num amplexo entre Religião e Ciência, confundindo-se em benefício de uma Humanidade sem peias de Fanatismo e de Superstições.
O atraso atual nos leva ao estudo de conjecturas da existência de um Deus Pessoal, isto é, de um Ser Individual. Esta é a idéia que tem de Deus os Místicos, concebendo Deus partindo do Nada, querendo dizer, com isso, que Deus não é Nada de particular, mas é um Todo no Universo.
Que autoridade tem os Místicos para afirmar isso?
Para o homem moderno o conceito de Deus se reduz a um sentimento, que não pode ser condensado em conteúdos, caracterizando-se como um sentimento de fé em extremo, passando-se a crer naquilo que atua na alma e forma os alicerces da fé, sem que se possa dar uma definição, no momento.
Sob este ponto de vista objetivo, a questão ontológica, marcou o primeiro passo na lógica da consciência religiosa, atuando Deus na alma, sem contudo, tirar-lhe a Liberdade. Tão grandiosa é esta idéia do Ser Divino, que ela desaparece no abismo da sua existência.
Os dois aspectos, o objetivo e o subjetivo se chocam. O objeto da crença é o Ser, idealizado pelo entendimento, pela intuição e pela tradição. Mas o que se passa no foro íntimo, permanece enclausurado numa conceituação ideal e problemática. Age, em primeiro lugar, a fé aceitando esse Ser Divino, mas encontrando relutância no entendimento e na fantasia, e ficando perplexos os dois aspectos, nas suas decisões qualitativas e quantitativas. É a fé que nos representa o Ser, como tal.
Esta relutância, segundo a qual o Ser não é acessível senão à fé e esta fé que se interessa somente pelo Ser, representa um dos polos da consciência religiosa. No outro, se congregam as energias psíquicas, que constroem o mundo religioso, como tudo o que nele se contém, as decisões divinas, os faustos divinos e os
imperativos da sua conduta.
Apesar de que, na realidade vital da religião, ambos os elementos, conteúdos religiosos e a fé neles, aparecem em unidade imediata, todavia, na sua análise, são considerados, separadamente, facilitando, assim, os dois aspectos, o do homem religioso e o do filósofo da religião.
Para o primeiro, o essencial é a fé, dispondo-se a se sacrificar por ela, embora isso seja, relativamente, secundário. Com efeito, o indivíduo aceita todo e qualquer dogma, sem perscrutar os motivos dessa aceitação. Assim procede, pelos seus sentimentos religiosos e mais nada.
O filósofo não age assim. Perscruta, critica, explica psicológicamente, torna-se indiferente à realidade, age como o matemático que tem diante de si as figuras geométricas, sem preocupar-se onde elas se encontram, o papel que representam e as leis a que estão sujeitas.
Isto posto, investiguemos o conceito da Personalidade Divina. Sujeito-me a todas as críticas, como todos aqueles que trataram deste assunto se sujeitaram, mas declaro que estou agindo com intenção reta, visando cooperar no esclarecimento da Humanidade. Para muitos, esse conceito personalista é uma prova que a religião não é outra coisa, senão a divinização do ser humano. Para outros, os panteístas e os místicos, isso é antropomorfismo. Outros, ainda, acham possível que o Ser Pessoal do Homem deu ocasião para a formação psicológica de um Deus Pessoal, cujo fundamento lógico e metafísico não depende dele.
Que é Personalidade?
Na minha opinião, é o ponto culminante da forma do organismo corporal, mediante sua prolongação na existência psíquica. O organismo constitui uma seção da existência física, aquela na qual suas partes mantém reciprocidade mais estreitas que em qualquer outra conexão inorgânica de elementos. A vida circula dentro de um âmbito limitado, no qual cada parte tem relação com as demais e, por motivo desta conexão, a caracterizamos como unidade. Neste sentido, nenhum ser inorgânico pode ser qualificado de unidade. Um roca ou um lingote são um, no sentido numérico, isto é, representam um modelo no conceito que lhes convém. Se separamos a roca do lingote, mecanicamente, cada peça continua
sendo pedra ou metal, um no mesmo sentido que foi o todo primeiro, enquanto que nenhuma das partes do ser vivo forma unidade, no sentido em que era tido este ser.
Este condicionamento recíproco dos elementos do organismo, na sua forma e funções, não é absoluto, porque o ser vivo mantém um intercâmbio constante com as partes de que se compõe, recebendo e dando, incorporado, como está num todo maior, de forma que não pode ser considerado como unidade, no sentido rigoroso, quero dizer, como alguma coisa que se basta a se mesmo e que pode ser incluído nas relações das partes do seu ser. Aparecendo, porém, a alma consciente dentro do organismo, as partes do ser oferecem um grau de coordenação e recíproco condicionamento que ultrapassa o grau da unidade corporal. É a diferença entre o psíquico e o corporal.
No corporal, a causa desaparece com o efeito, uma vez que, aparecendo este, aquela estingue-se, de tal maneira que não é possível sequer pelo efeito, se chegar à causa. Também, no espiritual, existe este tipo de causalidade, mas além dela, ou melhor, dentro dela, existe outro tipo que aqui deixo lembrança. Este supõe que o sucesso anterior, não somente é causa, como já disse, isto é, não só deposita seu quantum de energia, sua riqueza, suas condições num efeito, que oferece um aspecto morfológico completamente diferente, mas volta a aparecer como sucesso posterior no seu ser, conservando sua identidade morfológica. Todo o efeito físico pode ser provado, em princípio, por um grande número de causas diferentes, mas a representação lembrada, na medida que aparece, não pode ter mais de uma causa: A representação, de conteúdo igual, que foi conciente em um momento anterior, com a reserva, naturalmente, de curso anímico transcorrido entre os dois momentos e toda a constituição psíquica, cuja cooperação lhe permite ser agora relembrada. Daquí resulta uma constelação pecularíssima. Enquanto o curso do tempo, como tal, rememora o passado, sem permitir que seu efeito reproduza no posterior, que não contesta a influência recíproca, a lembrança recorda o passado, como se fosse presente, colocando-o assim em relativa indiferença frente ao curso do tempo.
Pois bem, os elementos da consciência estão condicionados necessariamente por elementos da consciência, quer dizer, que pode pensar ou ter presente a
corrente contínua da nossa vida interna, temos que reproduzir seus atos, cristalizados em nossa abstração em representações isoladas, delimitadas, modificando-se constantemente e, deste modo, o presente do homem vem a ser, no total, o resultado do seu passado.
Como a lembrança, por sua parte, faz, do passado, presente, assim, também, este passado, revivido desta forma, influirá em elementos representativos posteriores e atuais. Isto quer dizer que a casualidade uniteral, perspectiva, que se desenvolve no tempo, dentro da vida psíquica, se converte em ação recíproca.
Como a vida psíquica conserva a lembrança idêntica e permanente do passado, assim, embora pareça paradoxal, o presente atua sobre o passado e, ao mesmo tempo, o passado sobre o presente. Em cada situação de nossa consciência, a ação produzida de momento é, em geral, um mínimo. Na sua parte principal, ela vive de representações lembradas, e o quadro total resulta de ação recíproca, ou por outra, é a ação recíproca entre essas representações lembradas que, de certo modo, representam toda a nossa vida até ao momento e o que está fazendo atualmete. Deste modo, nos encontramos, dentro do raio de nossa consciência, com uma reciprocidade de ações e com uma unidade orgânico- pessoal que supera, em muito, em suficiência a unidade de nosso ser corporal. Também, teremos que supor que as representações inconscientes, sobre as quais, de algum modo, se apoiam as conscientes, se acham em permanente ação de reprocidade.
Não há dúvida que é falsa a idéia que converte as representações em seres, que emergem e se confundem, que se associam ou se separam. Semelhante idéia pôde produzir-se, abstraindo, da corrente contínua e unitária da vida interna, aquelas ações que são logicamente desprezíveis, revestindo-as de uma espécie de corpo. Tal sistema foi idealizado em benefício próprio, assim o cremos.
A representação, como alguma coisa delimitada, que atua ou padece por si mesma, é um puro mito, sugerindo pela analogia da física atômica. Sem embargo, não vejo, por enquanto, maneira de evitar esta duplicidade no sentido anímico. Trata-se, de um lado, de um processo em série que se desenvolve em unidade, sem dimensão, de vida e, por outro, de um complexo de ações, com as quais temos múltiplas relações. Embora não percamos de vista o caráter
exclusivamente simbólico e figurativo desta segunda parte, não obstante ter certeza que uma representação não se conserva, como câmara frigorífica, tal qual o ator que espera a cortina descer para ele aparecer, mesmo assim não se pode prescindir de uma certa firmeza ou duração. Como esta durabilidade afeta a inúmeras representações e nenhuma delas, ao reaparecer, manifesta absoluta identidade, é necessário supor que ocorreram modificações recíprocas, durante o estado latente.
Os elementos psíquicos, que subsistem de alguma forma além da consciência, encontram-se em uma incessante ação entre si e se vão aperfeiçoando mutuamente até formar a unidade que nós chamamos personalidade. Esta não consiste num centro permanente, senão em uma compenetração, em uma assimilação funcional, numa transmissão, associação, confusão dentro do ambito de todas as ações representativas.
Em oposição, portanto, ao elemento psíquico, que consideramos isoladamente e que, neste sentido, nos aparece como não localizado e na intempérie, surge e crece nossa personalidade como aquele acontecimento que denominamos com a forma simbólica de ação entre ação, entre todos os elementos. Seríamos personalidades completas, formalmente, consideradas, se esta ação entre ações oferecessem um aspecto de realizações psíquicas dessas representações. Mas não é assim. Com a nossa alma, sucede o mesmo que com o nosso corpo: Vivemos num mundo exterior. Na alma sucedem fatos que só, por ela, podem ser explicados e outros atos internos transparecem, sem que sejam esgotadas todas as possibilidades de ação no período psíquico. E, na medida em que nosso corpo não é capaz de satisfazer o conceito puro do organismo, do mesmo modo, a alma não satisfaz o conceito de personalidade. Pode ser que semelhante conceito haja nascido psicológicamente da nossa própria experiência, mas, pelo seu sentido, se trata de uma idéia, de uma categoria que não é atingida por nenhum ser empírico individual.
Nossa existência forma um curso temporal e, por esta razão, tem de recordar para provocar ação entre ação, não impedindo isso que se forme aquela unidade de fatos, que nós poderíamos designar como personalidade no sentido absoluto.
Capítulo V - Conceito de Deus
Assim como a idéia do organismo não se realiza, senão numa única representação, a do mundo universo, por ser este só quem, por definição, nada tem fora de se mesmo que possa interromper a perfeita e cerrada concatenação de seus elementos, assim, também, o conceito de Deus é a autêntica verificação da personalidade, porque Ele, tal como é pensado por uma religiosidade metafísicamente trabalhada, não conhece lembrança alguma na forma humano- temporal que implique uma lembrança do passado. Para ele não existe passado, porque não existe tempo. A totalidade e a unidade do seu ser não permitem a fragmentação do que está sujeito ao tempo.
Aquilo que se chama eternidade de Deus, essa abstração do tempo, é a forma dentro da qual é possível seu absoluto ser pessoal. Com isso não se humaniza a Deus, pelo contrário, coloca-se dentro da existência divina tudo o que ela contém, podendo, assim, ser definido: Um ser que é todo e é um, que subsiste por si mesmo, que não absorve nada do exterior mas que se absorve a si mesmo. O homem não é, nem pode ser assim: O homem de ontem não é o de hoje, porque se nutriu do que ontem não continha o seu organismo, porque o tempo de ontem passou e não volta mais; o de hoje vive e o de amanhã é incerto.
É absolutamente falso que Deus seja pessoal, à medida que o homem o coloca dentro da sua própria restrição. Com efeito, o homem não é mais daquilo que realmente é, a parte de um todo e não um todo. A sua existência não é absoluta, porque ele está preso ao tempo e a sua vida é um conjunto de recordações. À medida que a idéia de Deus é um todo efetiva, um colocar-se fora do tempo, a união absoluta de todos os momentos de sua existência, no mundo visível distanciando-se do homem, está presa, ao tempo, realça o conceito de ser Ele todo e um.
Do mesmo modo que condensamos a nossa própria unidade imperfeita em um eu que a abrange em forma extraordinária, assim, também, a unidade efetiva do Ser Cósmico está cristalizada num eu absoluto: A personalidade absoluta. Se dizemos que Deus – como personalidade – é a personalidade como Deus, está
visto que o Universo, sendo a soma de todos os seres que vivem no tempo e não existindo tempo em Deus, por ser Ele um Ser Absoluto – um e todo - , está em Deus e Deus está no Universo.
Insistimos: que Deus exista, que se acredite nele ou não, isso não tem importância, para quem estuda seu conceito. Não é menos certo que a alternativa entre a concepção panteísta e personalista, firme novas bases. Se se argumenta com rigor o conceito de personalidade, de forma que signifique, não a limitação do nosso ser, senão, pelo contrário, aquilo que o nosso ser participa com restrições, isto é, aquilo que nós não somos por limitados, compreenderemos que só se pode ser realizado num Ser Absoluto, que, em si, contém a totalidade do mundo, em substância. A concepção panteísta dá origem a problemas e contradições do conceito de Deus, que são resolvidos com o conceito de personalidade.
A manifestação do divino está, para os estudiosos da história da religião, no contacto de Deus com o crente e com o mundo. O Deus a quem nos entregamos é, acima de tudo, todo poderoso. Este motivo – tanto na superstição mais rude, como na mais sublime especulação cristã – supõe certa independência do existente naquele em quem o poder se manifesta, formando-o, sobrepujando-o, dirigindo-o, mas um Deus que forma unidade com a existência não pode gozar de poder, pois este careceria de objeto.
Este contacto de Deus como o ser individual é necessário para a análise do amor. Quando a paixão mística movimenta-se para fundir-se com o seu Deus, quebrando todas as dificuldades, é possível que se sinta grande e profunda, feliz no seu amor. Chegando, porém, o momento da posse, a paixão sente falta do objeto, porque a unidade absoluta não pode corresponder, estando,como ela está, na posse de si mesma.
Desaparecendo a dualidade, desaparece a possibilidade de dar e de receber, de amar e de ser amado, tal qual como foi criada a alma religiosa. A alma sente nostalgia, mas apesar disso, repousa em Deus. Esta dualidade de amor e de posse, não condiz com a absolutividade da natureza divina. A alma, possuindo a Deus, todavia não o conquista, pela paixão, porque isso importaria numa limitação divina e Deus não tem limites – Deus é Um e Todo – Deus não assiste impassivamente ao desenvolvimento dos acontecimentos. Toma parte em todos
eles, atua na natureza inteira. Dizer que, nestes e naqueles fenômenos, Deus não toma parte, e noutros, sim, seria desfazer de Deus. A natureza inteira não estaria nele, ao passo que está.
A rigorosa conexão regular do cosmos, por um lado, e a unidade de Deus, por outro, impedem que as diversas partes do mundo tenham com Deus ligação diferente. Se um pássaro não cai sem o consentimento de Deus, é consequência inevitável que o mundo está absorvido na unidade de Deus, sem que haja, entre ambos, possibilidade de ruptura.
Esta dialética leva o conceito de Deus ao plano panteísta, mas nele não pode permanecer, pelo motivo que existem valores imprescindíveis que estão ligados à dualidade e à existência separada de Deus e do mundo, de Deus e do homem, abordando com seriedade o caráter absoluto do princípio divino. Não poderão se conciliar estes valores e desta fusão não poderá sair uma expressão única e adequada da nossa relação com o infinito? A idéia de Deus, nesta constelação, encontra seu símbolo visível na personalidade, porque, por essência, a personalidade supõe que uma quantidade ilimitada de conteúdos, possuidor, cada um, de certa independência, se considerem, sem embargo, como conteúdos ou produtos de uma unidade que englobe a todos. O eu assimila cada um de seus pensamentos, seus sentimentos, suas resoluções como possíveis e reais só nele, todavia, se encerra cada um destes conteúdos encontra alguma coisa que não se resolve neles. O conteúdo, por sua vez, não encontra solução no eu, embora o eu julgue cada conteúdo, o aceite ou repila, se faça ou não senhor dele: O ter do nascido eu e fazer parte de sua vida constituem essa peculiar relação de pertença que não impede a distância nem a liberdade. Assim como na vida corporal, o membro está unido ao organismo inteiro, assim também, na vida psíquica, a alma está unida ao todo.
Quanto maior é o grau em que nos sentimos como personalidade, tanto maior é o conceito que fazemos da nossa independência dos demais seres individuais, crescendo o eu com relação ao conteúdo. Mas é, também, verdade que, quanto maior é a sua independência, com maior denodo ela é defendida nos seus direitos lógicos e éticos, dinâmicos e históricos, para que não seja envolto e revolto no seu destino particular. E, sem embargo, quanto mais personalidade possuimos, tanto
mais se manifesta a cor do nosso eu, resultando daí o conhecimento das nossas notas características e reconhecíveis como exclusividade nossa, tornando-nos soberanos e independentes.
Toda personalidade traz consigo um sentido duplo, sendo isso que a distingue, por completo de outros fenômenos ligados, exteriormente com ela, por exemplo: O Estado, por forte que seja, não pode legislar senão para os atos externos. As categorias lógicas fracassam ante a forma existencial da alma considerada como pessoa. Não é possível descrever a vida psíquica presa ao eu, vivendo este em cada uma das partes, às vezes em luta umas com as outras, mas todas essas partes identificadas nesse eu. Daí, torna-se fácil compreender, como Deus sendo pessoal, vivendo em todos os seres, imprimindo vida a todos os seres, vivendo nessa totalidade de seres, formando um todo com o universo e com cada ser, vive Deus no meu eu e eu no ser divino - pessoal e todo – Está, pois, Deus no meu pensamento e em todas as ações praticadas pelo meu ser, como está na vida de todos os animais, de todas as plantas, de todos os minerais, de todos os elementos da Natureza. Deus é um e todo, assimila todas as coisas, mas não é assimilado ou confundido pelo meu eu e pelos diversos seres existentes no universo – vive em todos, dá vida a tudo quanto existe, mas não é absorvido por nenhum ser inferior. Neste sentido, podemos admitir o panteísmo, porque Deus fica sendo pessoal e total, mas nunca deificaremos a matéria.
Dentro desta explanação, está rechaçada toda e qualquer idéia de antropomorfismo de Deus.
Pelo contrário, o ser humano fica subordinado inteiramente ao conceito universal com relação a todas as existências particulares, todas elas limitadas, enquanto Deus tem a sua realização absoluta, perante o Universo.
Capítulo VI - Personalidade Humana e Divina
Contemplemos a idéia essencial de personalidade numa forma, por assim dizer, mais coletiva. A característica definitiva do espírito pessoal afigura-se ser essa sua auto-disjunção em sujeito e objeto, porque são uma mesma coisa com a sua capacidade, para chamar-se a si mesmo eu e aos outros tu, e a sua auto- consciência, que converte a função sua própria num conteúdo de si mesmo.
Com a auto-consciência a vida se separa e se une, com o que, naturalmente, expressamos em sucessão temporal um ato, em realidade, unitário. O fato fundamental, os romanos diriam o milagre do espírito, aquilo que passa a ser espírito pessoal, é o que, permanecendo na sua unidade, se defronta, sem embargo, consigo mesmo, é a identidade do que sabe e do que a sabido, do conhecimento do próprio ser e do próprio saber, isso constitui um protofenômeno que vai além do antagonismo mecânico-numeral da unidade e da dualidade.
O caminho da vida, no qual cada momento posterior do ser vive do momento anterior, vivendo uma vida que não se confunde com a vida vivida nos outros momentos, nos quais o produzido prolonga a vida do produtor, sendo aquele diferente deste, mas, contudo, de algum modo, é a mesma vida, este caminho se estende no tempo e se reconcentra na auto-consciência, encontrando nela sua forma fundamental intemporal. Nisto difere, profundamente, um organismo de um mecanismo, de onde o fato de uma pluralidade se concentrar numa unidade ou uma unidade se tornar uma vida múltipla no espaço e no tempo tratando-o de espírito pessoal, da consciência de si mesmo, concentrando-se, por assim dizer, no mesmo ponto. Essa interação, que constitui, de um modo geral, a essência do que vive e do espírito na auto-consciência, sendo o sujeito seu próprio objetivo, logra sua forma absoluta.
Deste modo parece explicada, com maior pureza, a forma que simboliza a unidade do ser divino. Alguns historiadores de religião afirmam que nunca existiu nenhum monoteísmo completamente puro. Parece que o divino traz consigo uma tendência irrefreável à divisão, fazendo-se acompanhar se serafins ou de espíritos. E a sua unidade mais perfeita, tal como é sentida no panteísmo e,
em parte, na mística, supõe, ao mesmo tempo, sua mais perfeitas dissolução na diversidade dos fenômenos reais. Com isto, acho que se nos oferece uma aproximação do conceito de personalidade que, não se pode negar, precisará ter muito cuidado, a fim de que não se contamine de antropomorfismo.
A autoconsciência, segundo a qual o pensamento, não obstante permanecer na unidade, se divide para converter-se em seu próprio objeto, constitui o fato fundamental do pensamento, em geral, e seu tipo abaciador, sua forma mais pura, segura, de certo modo, o esquema prévio para o pensamento de um conteúdo individual. O grande mistério do pensamento, como será possível que, constituindo um processo que permanece em si mesmo, possa ter um objeto? Como é possível que a pura subjetividade de sua incumbência possa registrar alguma coisa capaz de enfrentá-lo e se esclareça, pensando que já possui em si mesmo, como “auto-consciência”, esteja em si e fora de si, este hermetismo e esta inclusão do que lhe está na frente? Isto explica-se considerando que a identidade do sujeito e do objeto constitui a forma da sua própria vida.
Assim se manifesta, dentro da categoria do pensamento humano, a forma ideal daquela divisão que experimenta o divino, sem ficar prejudicado na sua metafísica unidade, ficando o maior ou menor grau na dependência do desenvolvimento religioso. Por esta razão, toda a especulação, filosófico- religiosa está vasada no motivo da auto-consciência de Deus, muitas vezes, não é senão expressão da personalidade de Deus. Não é possível pensar, como uma unidade pura e simples, o princípio do divino, porque essa unidade é estéril para a nossa capacidade representativa. Para tê-lo como unidade, é necessário imaginá-lo na forma implicada pela personalidade consciente, cindí-la em si mesma e ganhar assim um objeto que é um movimento, eficiência, vida e que permanece, sem embargo, encerrado na unidade a que pertence. É indiferente que, com fantasia especulativa, convertamos este fato, em espécie, em panteão imanente, como sucede com a trindade cristã, dentro do catolicismo romano, ou em uma espécie de panteísmo para aquele que a riqueza do processo cósmico não é outra coisa que esta elasticidade da unidade divina, convergindo para o seu próprio objeto, como nos aponta a mística de Spinosa, dizendo que nosso amor a Deus não é outra coisa senão uma parte do amor com que Deus se ama a si mesmo. Este conceito,
porém, da personalidade, sob pena de cair no antropomorfismo, exige um alto grau de abstração. Pelo exposto, parece que Deus fica, exclusivamente, vinculado ao espírito. No entretanto, o divino não pode ficar reduzido a este conceito, porque designar Deus como espírito não é outra coisa que um materialismo às avessas, circunscrevendo-o a uma absolutização de uma determinada substância.
Para poder se falar da personalidade de Deus, torna-se necessário considerá-la como uma forma tão geral, que a auto-consciência espiritual, que é a única que empíricamente não é acessível, não constitua mais que um caso especial. A única maneira da posse da experiência de que um sujeito seja seu próprio objeto, é, sem dúvida, a autoconsciência do espírito. É porém, mister separar, desta forma de relação, este substrato especial, se quisermos seja atribuido a um ser absoluto, a um ser no qual a existência encontra sua totalidade. Não é possível fazermos uma idéia mais clara, que nos patenteie o que, em conceito, é de rigor.
Tiremos, agora, a indução final.
Se é uma representação forçosa do ser divino que, por cima da unidade morta, deve possuir um outro, com o qual se encontre em uma interação viva, sem que este outro lhe tire, porventura, sua unidade, senão que permaneça sendo o mesmo nesta relação – quer dizer que sujeito e objeto sejam idêntico -, isto se realiza na forma de personalidade, mas de maneira alguma de personalidade humana. Não se trata de uma transposição antropomórfica em Deus de limitação humana à mera consciência da unitária dualidade, senão, elo contrário, a personalidade é aquela característica formal ou, se se quiser, abstrata, cuja realização plena não pode ser senão para um ser absoluto, enquanto que uma realização menos plena, unilateral, espiritual, está representada pela nossa vida. Em outras palavras, poderá se dizer que o homem é um pequeno Deus e não que Deus seja um homem grande.
E com isto subtraimos de novo o princípio que está guiando nossas investigações. A ordem e a valorização das realidades de nossa vida, nós conseguimos em virtude de um complexo de idéias, cuja consciência, sem dúvida, se destaca, psicogenéticamente, do estado acidental e fragmentário da vida empírica, que, por seu sentido, possuem uma independência ideal e uma suficiente perfeição, das quais derivam nossos conteúdos reais, por uma espécie de
substração, sua denominação, sua medida, sua forma particular. Saber se isto sucede em que medida, é questão de pura possibilidade do fato, nada influindo na constatação daquelas teorias, suas conexões de sentido, na sua significação lógica e normativa.
Quando queremos pensar no ser divino em atenção a seus atributos, isto é; naquilo que ele, verdadeiramente, é, temos que acudir a essas idéias, na sua forma absoluta e pura. Não se trata de uma diferença de grau, como se Deus possuísse mais justiça, mais poder e mais perfeição que o homem, semelhante raciocínio tem raízes humanas e é mero antropomorfismo. Para o crente, Deus é a idéia do poder, da justiça, da perfeição, em forma real. Seu conteúdo, o de Deus, é imediatamente aquilo que fecunda a existência relativa dos homens, como seja, suas categorias ideais, a pura significação de onde recebe o que é sua e forma nossa vida relativa, imperfeita e mista.
Enganar-me-ia, escrevendo o que acabo de assinalar, se não tivesse presente que o essencial não é que Deus esteja acima dos homens, senão que o homem está abaixo de Deus, constituindo isso um elemento de religiosidade cultivada, em todos os seres. O primeiro é óbvio; o segundo é a própria fonte do sentimento religioso e da missão do homem. Na relação entre Deus e o homem, este é algo relativo; o primeiro absoluto, ou seja, a realidade daquele ideal com relação ao qual o homem atribui forma, medida e sentido à relatividade de seu ser. Se temos ou não de crer nesta realidade, é questão de religião, não de filosofia religiosa, que não pode ocupar-se senão daquilo que para o homem é religioso, por paradoxal que pareça, é secundário: se seja divino ou se é divino. Minha tese foi mostrar que o conceito de personalidade, partindo do homem, pode conduzir- nos ao pedestal de uma essência divina.
O conceito de personalidade precisa ser compreendido na sua essência e com toda pureza, para que nos esclareça como, pertencendo à classe que não recebe orientação de baixo, ao invés, lhe imprime forma, atuando sobre os particulares conteúdos em forma análoga, descortinando assim, ao espírito religioso, como atua o ser de Deus sobre o ser humano. Estas questões são tão independentes, pertencem a classe objetivas tão distintas e se nutrem em fontes tão diferentes da alma,que a filosofia da religião pode afirmar bem que Deus é personalidade, sem
que, nisso, haja qualquer falha, privando-a de dizer que Deus é. Mantendo- se neste terreno, não pode ser confundida com uma especulação ilegítima que pretende descobrir o ser real, sem que lhe baste a ordem ideal do conteúdo desse ser.
Quando a filosofia da religião abandona toda competência desleal com a religião, goza dos direitos de um quadro que representa a lógica interna, o sentido dos detalhes e das conexões de um mundo plástico, que a forma artística afasta de toda pretensão de acidente realidade. A especulação parece-se com esse quadro, porque com meios suficientes para a construção de um mundo ideal, embora não real – no sentido empírico, como no sentido da fé -, trata, não obstante, de conectar as forças produtivas deste último.
Capítulo VII - Gênesis e Evolução Psicológica da Religião
É a psicologia das Religiões, ao mesmo tempo que um trabalho de investigação da alma dos povos, uma fonte insondável, para todos os estudiosos, no campo da Pedagogia, da Sociologia e, em geral, da Psicologia comparada, sendo as presentes investigações básicas, nos centros culturais.
Não é nossa intenção traçar uma história completa do pensamento religioso, mas definir os elementos essenciais das principais religiões, demonstrando o lugar que ocupam, entre seus adeptos, e as esperanças que estes nutrem, na solução de seus problemas, descrevendo as etapas, por que passaram, a começar dos atos mágicos e crenças dos primitivos, até as construções metafísicas ou arroubos místicos dos grandes apóstolos do cristianismo ou do budismo, examinar, em suma, o papel que desenpenhou ou desenpenha a religião na vida do espírito. Este o nosso objetivo, pondo em evidência, embora em síntese, os fatos, para justificar as teorias das diversas religiões.
Comecemos, pois, pela gênesis e evolução psicológica das religiões.
Trata-se, primeiramente, de examinar, antes de descobrir as leis gerais, as religiões em seu conjunto e em suas grandes divisões constitutivas. O material não falta, temos em abundância, precisamos até de selecionar. Eliminemos, em primeiro lugar, tudo o que está fora do assunto, a saber:
1) as religiões desde o ponto de vista objetivo, quer dizer, na sua realidade e na sociedade cósmica que formam, supondo-as verdadeiras;
2) as religiões desde o ponto de vista subjetivo, mas externo, formando uma sub-divisão da sociologia;
3) as religiões no que tem idiossincrásico ou contigente, limitando-nos a anotar os pontos essenciais e comuns.
Para operar em massa menos compacta, devemos dividir a religião e seus elementos principais, mesmo sintéticos e completos, para considerá-los, todavia, separadamente, abordando:
1) as divisões internas da religião;
2) do dogma ou doutrina;
3) da moral;
4) do culto.
Estas são, com efeito, as divisões essenciais.
Correspondem tais divisões, como veremos, às que se observam principalmente na mesma psicologia e que se designa com o nome de faculdade do espírito: inteligência, vontade e sentimento, divisões verdadeiras, um tanto antiquadas, e que precisam ser separadas do composto de que fazem parte.
É preciso distinguir gênesis e evolução.
Estes dois momentos são dirigidos pela mente, de tal sorte, que podemos muitas vezes compreender o que ocorreu no espírito da humanidade pelo que ocorre numa criança. A gênesis é a que tem caráter mais marcado.
Finalmente, no curso da evolução, a religião enriqueceu-se em ramificações que, no princípio, não existiam. Assim é como se explica a tendência para a moral ritual, depois de ter passado muito tempo, simplesmente, com a moral natural, unindo-se, com o andar dos tempos, a moral natural com a moral ritual. Por sua vez, a religião abrangeu, em sua síntese vasta, as ciências e as artes que, dela, se separaram mais tarde.
Passemos, agora, às divisões internas da religião e a formação de uma moral social.
A religião tem distintas funções, sendo possível reduzí-las a três. Em primeiro lugar e seguindo a ordem lógica, não sendo possível a histórica, trata de descobrir, já pelo estudo unilateral, seja por revelação, quais são os seres cósmicos, sua origem, fim, transformações, relações necessárias.
Sob este ponto de vista, sobretudo, é científica, formula suas descobertas em dogmas que impõe à crença de seus adeptos e que constituem sua teologia e, quando a religião é políteista e antropomórfica, sua mitologia. Não é tudo. Esta contemplação não forma senão a parte menos original de sua obra, a que tem em
comum com a filosofia e a ciência.
Definidas estas relações e supondo o homem livre até certo ponto, como também outros seres, existem relações vontade, que se trata de regular. Supondo que haja entre os seres visíveis e o homem um certo número de seres invisíveis e, por fim, a divindade, se formarão entre eles relações atuais, atos unilaterais ou recíprocos, e estes atos estarão ou deverão estar conformes com uma coordenação ou uma subordinação, em hierarquia natural. O homem terá deveres a cumprir para com Deus, bem como, embora seja este ponto menos conhecido, direitos a exigir de Deus. Isto ocorrerá entre o homem e os seres invisíveis, almas dos antepassados, anjos bons e anjos maus, se existem, e, também, entre o homem e os seres inferiores, os animais. E haverá deveres entre os homens.
Verdade é que estes deveres e sua sanção, se há lugar para sanção, entram no domínio da sociologia e formam matéria de direito, extensivos à religião. O homem fica assim unido ao laço social e, também, ao cósmico.
Esta pluralidade de laços concebe-se logicamente. Não haverá outro que venha, por sua vez, unir-se aos primeiros, o laço antropológico de descendência, que constitui a família objetiva? Enlace biológico, sociológico, cósmico. Este último é o que a religião estabelece entre os diferentes seres que compõem o mundo e impõe, em seguida, a todos os seres. Consequência lógica é o dogma porque, para estabelecer as obrigações recíprocas, é necessário, previamente, ter consciência dos seres, entre os quais estas relações tem lugar. Finalmente, não se trata tão somente de descobrir quais sejam todos os seres visíveis e invisíveis e quais devam ser as relações necessárias e as voluntárias entre eles; preciso é, ainda, realizar atual e cotidianamente estas relações, estabelecer a comunicação que existe entre o homem e a divindade. Isto processa-se pela prática do culto.
Capítulo VIII - Dogma, Moral e Culto
A religião constitui um laço social ou mais exatamente suprassocial, sendo principalmente sociológica e não diretamente psicológica, e suas capitais divisões estão sociologicamente orientadas, podendo isso parecer à primeira vista, neste particular, ausência de intervenção da sociologia. Isto, porém, não é verdade, mas é necessário que assim se proceda para um acurado estudo das religiões, sob o ponto de vista objetivo. Do ponto de vista subjetivo, único que atualizamos, a organização da doutrina, da moral e do culto, outra coisa não são senão realização de necessidade e instintos mentais. A necessidade de crer e sua realização na doutrina, é um fenômeno de espírito, que corresponde a uma parte, desde a inteligência. A prática da conduta às regras, mediante a moral, é necessidade de vontade. Finalmente, o contato com a divindade, é necessidade de sentimento. Isto posto, dizemos:
A religião compõem-se de três partes: O dogma ou mito, a moral e o culto. Estas divisões são bem conhecidas e admitidas, geralmente.
A ordem genérica que acabamos de indicar como lógica, não é de modo algum a que revela a história. Em linguística, é preciso começar pela gramática. Ela indica as formas, os usos, as regras, as aplica, em seguida, às palavras, e aprendem-se as mesmas palavras, não é, porém, esta ordem seguida pelos povos. Eles começaram pelas palavras:falaram, sem conhecer as regras, e somente mais tarde, analisando a língua, adaptaram às regras.
É o que se verifica na religião e na sua história. Começou-se pelo culto, pela prática antes da teoria. Foram adorados, em primeiro lugar, os deuses ou manes, digamos, seres visíveis ou invisíveis, sem qualificar quais esses deuses, sem classificá-los, sem dogmatizá-los. O instinto os indicava. Não foi suficiente esta religião unilateral. Pela feitiçaria, chegou-se aos deuses, entrando-se em comunhão com eles. Foram feitas oferendas e sacrifícios. Exigiu-se deles, em troca, benefícios. Numa palavra, foi praticada a religião, antes de conhecê-la bem. Começou-se pelo fim lógico, pelo culto.
Portanto, estabelecidas estas relações, fácil se tornou a comunicação com a
divindade, resultando daí esta pergunta: Que divindade é essa, com a qual se entrou em comunhão empírica? Foram classificados os deuses, feita a sua geologia, estabelecida a hierarquia dos seres invisíveis, investigada a origem e fim do mundo e do homem.
Os dogmas e, em alguns casos, a mitologia, vem em segundo lugar, na história. Ainda há povos, não civilizados, nos quais apenas se desenvolve. Basta estudar sua cosmogonia embrionária, muitas vezes, incoerente e absurda, para convencer-se disto. Seu espírito desaparece ante o impossível. Não se chega à conclusão se a criação teve lugar por completo ou se já existia alguma matéria. Sua escatologia não é menos flutuante e vazia. O que sabem é orar e, sobretudo, sacrificar, tratar de subornar a força desconhecida e invisível para que lhes seja favorável.
A parte moral demora mais a aparecer. Parece, todavia que deveria aparecer imediatamente, tal é a razão utilitária da religião e seu benéfico efeito, inseparável dele. O estudo das religiões prova que nada disto acontece, viveram, como aí estão os resultados, muito tempo os povos sem a moral religiosa. Este é um dos mais curiosos resultados deste estudo das religiões e que, à primeira vista, desconcerta, completamente, a pessoa interessada. Hoje, com efeito, não se chama a moral em socorro da religião e quando se trata de independente, parece que esta não tem raízes, posto que a religião nos deu a que possuímos. E assim a moral, independente da religião, se uniu a ela para formar, com ela, um todo, e, em algumas religiões, nunca entrou, senão, imperfeitamente. Em todo o caso, entre os elementos da religião, a moral, é certamente, o último a aparecer. O predomínio da moral é, por outra parte, um dos critérios mais essenciais e fáceis de reconhecer, numa classificação de religiões.
A distinção clara entre dogma, moral e culto, não pode ser colocada muito em relevo. Assim a filosofia não tem culto, mas possui um dogma e uma moral, e a ciência sintética só tem dogma. A conexão destes elementos conduz as religiões à grande influência, quando, sobretudo, a união é mais estreita. Importa tecer considerações sobre esta união. Importa, também, observar como a mitologia na história do dogma transformou-se, pouco a pouco, em teologia.
Entre os não civilizados, a moral está inteiramente separada da religião. O homem pede exclusivamente aos deuses: Saúde, Felicidade, Segurança e Vitórias. A oferenda do sacrifício não implica idéia alguma de redenção e reparação de faltas, senão obtenção de favores. Assim se sobrepõe à prática do culto e a oração torna-se coisa secundária. Somente, mais tarde, o sacrifício, que não era ainda expiação, evolui e integra-se. A idéia de expiação é tardia. A moral forma-se à parte. Tem sua evolução própria, diferente da religião. Por sua vez, firma-se e se espiritualiza pouco a pouco e, só depois deste progresso, une- se à religião. Tem sua origem mecânica. Nasce com os costumes, pela prática, tal qual como o direito, de onde tem origem a lei, vindo a ocupar lugar simétrico na sociologia. É, também, variável em extremo, de acordo com os costumes de cada povo. De onde se verifica que o objeto da religião ritual ou dogmática e da moral, difere muito. A primeira quer somente conhecer e entrar em relação com a divindade.
Que importa à divindade que o homem seja bom ou mau, contanto que lhe esteja submetido, a adore e ofereça dádiva. Esta idéia, porém, não subsiste nas atuais elevadas religiões, em que é preferido o indivíduo dissoluto ao blasfemo? Por sua vez, as divindades nem todas são boas. Há aquelas que são más e crueis, e não é pela bondade que são consideradas agradáveis, pelo contrário, muitas vezes as divindades são desarmadas por atos imorais. Os sacrifícios humanos provam isso.
No mais, não há logicamente dependência mútua essencial entre a religião e a moral. Para estabelecê-la é preciso supor que o próprio Deus a haja ordenado, podendo ser que não haja falado nada nesse sentido, sendo provável que, se houvesse falado, o faria em seu proveito, prescrevendo, por exemplo, a observância de atos religiosos, tais como a adoração, a abstinência, o jejum, as autoridades. Unindo as religiões mais perfeitas, nelas, a religião e a moral, entre uma e outra, deparamos que são sobrepostos os preceitos religiosos aos da moral propriamente dita, formando uma moral artificial. Na Igreja Católica Romana, vemos que a audição da missa, aos domingos e dias santificados, é preceito tão severo que, na outra vida, é equiparado ao homicídio ou parricídio. Analisando-se, profundamente, encontramos duas ou três espécies de moral: Uma, psicológica, que se afasta do mal em si, mal relativo, é verdade, e que varia em
cada etapa da evolução que permanece, todavia, intríseco e enraizado na consciência, outra, cosmosociológica, que procede de uma ordem ou proibição de
um ser superior, sem que o ato seja bom ou mau, em si, como na audição da missa ou no jejum, não levando em consideração, para efeito de raciocínio, neste segundo caso, o prejuizo material que poderá causar à saúde o jejum. Precedendo, porém, da divindade a ordem, a falta de observância, em si, é culpável. A terceira espécie de moral é a sociológica, baseada no mútuo interesse dos membros da sociedade humana, sujeita a sanções materiais aplicadas pela sociedaade. Esta moral externa chama-se Direito.
Uma dessas espécies de moral, a cosmo-sociologica, isto é, a que consiste na obediência gradual de uns aos outros dos seres cósmicos, sobretudo, o Ser Supremo, é a que forma parte integrante e imediata da religião. A psicológica, que se fundamenta na distinção entre o bem e o mal externos de acordo com os costumes do momento, no começo, é independente, mais tarde, porém, por atração, une-se à moral cosmo-sociológica ou religiosa, baseada nos preceitos divinos.
No mais, o laço é inteiramente natural. O caráter da divindade flutua primeiro entre uma natureza boa e má; em seguida, faz-se a separação, ficando colocado, de um lado, o deus do bem e, de outro, o deus do mal. Estabelece-se, então, a luta entre eles, triunfando o deus do bem. Deste momento em diante, o Deus bom já não pode querer outra coisa senão o bem. Sua vontade coincide exatamente com ele. Esta transformação opera a fusão de ambas as classes de moral, da psicológica ou humana e da cosmopsicológica ou divina. Com esta união, ficam reforçadas ambas as classes de moral, quer a psicológica, quer a cosmo-psicológica.
A introdução da moral natural na religião teve lugar muito antes do judaismo. O Gênesis fala muito claro desta evolução. No princípio, Adão e Eva habitavam o paraíso terrestre, não conhecendo outra coisa senão a moral ritual, isto é, obedecendo ou desobedecendo às determinações de Deus, sem conhcer o bem ou o mal. Em consequência de haver infringido uma proibição divina, comem a fruta da árvore do conhecimento do bem e do mal, seus olhos se abrem e, desde então, a moral natural substitui à moral ritual ou se coloca a seu lado. Isto marca a diferença entre ambas as morais.
Anteriormente, porém, entre a moral e a religião havia diferença ou, para falar com mais exatidão, esta diferença era entre a moral psicológica e a religiosa, chegando a ser antagônicas. Antes de provar, apontemos o erro ou melhor o modo imperativo de certos autores que afirmam pura e simplesmente a independência primitiva da religião e da moral sem outro acréscimo. Isto poderia supor que não existia primeiramente na religião moral alguma (psicologia) religiosa com a qual formasse parte integrante e que se cumpunha só de culto e de dogma.
Como dissemos, isto é inexato. A religião sempre teve uma moral religiosa, que consiste na execução das ordens da divindade, somente que estas ordens não se orientavam por um princípio de regra do bem, mas, simplesmente, pelo capricho ou interesse. Na realidade, somente a moral psicológica era em princípio independente, tendo evoluído, durante muito tempo, separadamente.
Entre ambas as morais, portanto, houve, antes da sua união, frequentes conflitos graves. A título de comparação, acrescentemos que estes conflitos são tão frequentes entre a moral psicológica e a social ou, digamos melhor, entre a moral psicológica e o direito. Este, para permanecer externo e não tornar-se inquisitorial, precisa se contentar, às vezes, com aparências e chega assim a resoluções que ferem, profundamente, a Justiça. Isto, é claro, causa prejuízo à moral religiosa de qualquer religião, o que não impede, como estamos vendo, mesmo nos nossos dias, que a Religião, seja Santa!...
Rio, 24-12-1954.
Dom Marcelo Pires é bispo em New York da Igreja Catolica Nacional Americana. Graduou-se em Filosofia pela UFBA – Universidade Federal da Bahia em Salvador e pós graduou-se em Ciências Sociais pela FCLPAA – Faculdade de Ciências e Letras Plínio Augusto do Amaral em Amparo – SP. Iniciou seus estudos religiosos no SBBA – Seminário Batista da Bahia e no ITEBA – Instituto de Educação Teológica da Bahia, ambos em Salvador. Especializou-se em Estudos Religiosos pelo The Mercer School – Memorial School of Theology e no TGTSEC - The General Theological Seminary of the Episcopal Church, ambos em New York.
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